1. A NATUREZA DAS SOCIEDADES COMPLEXAS
O estudo das sociedades complexas traz problemas bastantes pertubadores para uma tradição antropológica criada a partir de uma experiência com sociedades de pequena escala e de cultura relativamente homogênea. O primeiro e grave risco metodológico é, ao isolar, por motivos de estratégia de pesquisa, segmentos ou grupos da sociedade, passar a encará-los como unidades realmente independentes e autocontidas.
É evidente que depois de décadas de pesquisa etnológica vários autores já demonstraram como essa "naturalidade" do isolamento pode ser ilusória e como grupos aparentemente isolados podem fazer parte, de várias maneiras, de um sistema mais amplo em termos econômicos, políticos e culturais. Por outro lado, a própria unidade e/ou homogeneidade de sociedades tribais ou "não-complexas" só pode ser aceita com fortes restrições, fazendo todas as ressalvas quanto ao nível ou dimensão de vida sócio-cultural a que estamos nos referindo e com que outro tipo de sociedade comparamos quando falamos de menor complexidade.
A noção de complexidade traz também a idéia de uma heterogeneidade cultural que deve ser entendida como a coexistência, harmoniosa ou não, de uma pluralidade de tradições cujas bases podem ser ocupacionais, étnicas, religiosas, etc. Obviamente existe uma relação entre estas duas dimensões - a divisão social do trabalho e a heterogeneidade cultural.
As categorias sociais daí surgidas tendem a articular suas experiências comuns em torno de certas tradições e valores. O problema é verificar o peso relativo dessa experiência em confronto com outras como a identidade étnica, a origem regional, a crença religiosa e a ideologia política. Uma questão interessante em antropologia é, justamente, a procura de localizar experiências suficientemente significativas para criar fronteiras simbólicas.
O fato importante
é que estamos lidando com conjuntos de símbolos que vão
ser eutilizados pelas pessoas nas suas interações e opções
cotidianas, num processo criativo ininterrupto havendo alguns mais eficazes
e duradouros do que outros. A relação entre o desempenho
de papéis e esses conjuntos de símbolos constitui uma questão
estratégica para a antropologia social.
2. A SOCIEDADE COMPLEXA MODERNO-CONTEMPORÂNEA
É preciso admitir que de qualquer forma continua-se lidando com situações e tipos de sociedades muito heterôgeneas. Mas uma distinção torna-se importante - entre as sociedade complexas tradicionais e as modernas, insdutriais. A Revolução Industrial criou um tipo de sociedade cuja complexidade está fundamentalmente ligada a uma acentuada divisão social do trabalho, a um espantoso aumento da produção e do consumo.
As sociedade
complexas industriais modernas abrangem um maior número de indivíduos
devido ao desenvolvimento das forças produtivas. A grande metropóle
contemporânea é, portanto, a expressão aguda e nítida
desse modo de vida, o locus, por excelência, das realizações
e traços mais característicos desse novo tipo de sociedade.
3. FRONTEIRAS CULTURAIS
Em qualquer sociedade e/ou cultura é possível distinguir áreas ou domínios com um certo grau de especificidade. É importante para o antropólogo verificar como os próprios nativos, indivíduos do universo investigado, percebem e definem tais domínios para não cairmos na armadilha muito comum de impormos nossas classificações a culturas cujos critérios e crenças possam ser inteiramente diferentes dos nossos.
As ciências
sociais desenvolveram conceitos e instrumentos de trabalho que são
usados para comparar diferentes culturas e sociedades. Fundamental para
o antropólogo é perceber quais são as distinções
importantes para o nativo que podem ser surpreendentemente diferentes das
de sua cultura de origem.
4. CLASSES SOCIAIS E UNIVERSO SIMBÓLICO
Os indivíduos participam diferencialmente de códigos mais restritos ou mais universalizantes. Segundo Basil Bernstein, essa diferença é resultado de relações específicas entre o modo de expressão cognitiva e experiências diferenciadas em função da classe social específica a que pertençam os indivíduos.
A experiência de mobilidade social, a ascensão ou decenso introduz variáveis significativas na experiência existencial. O contato com outros grupos e círculos pode afetar vigorosamente a visão de mundo e estilo de vida de indivíduos situados em uma classe sócio-econômica particular, estabelecendo diferenças internas.
Enquanto em
certas culturas ou subculturas o indivíduo é o foco ideológico
central, isso não acontece em outras em função de
peculiariedade econômicas, políticas e simbólicas.
Uma das grandes conquistas das ciências sociais foi o humanismo antropológico
anti-racista, que retomava de certa forma o discurso iluminista ao enfatizar
o valor das especificidades de cada cultura, procurando descobrir por detrás
delas um ser humano universal. Trata-se de buscar a igualdade na diversidade.
5. INDIVÍDUO, INDIVIDUALISMO E PROJETO
A noção de indivíduo como a conhecemos contemporaneamente seria intensamente subordinada. Mas quando a investigação se aproxima de conjunturas ou situações mais limitadas, há que primeiramente relativizar essas afirmações.
Há vários exemplos históricos de sociedades tradicionais em que as coisas e pessoas pareciam estar no lugar certo e adequado podem modificar-se com verdadeiras comoções, sob o estímulo de incidentes aparentemente banais. Esses que muitas vezes parecem ser de origem externa podem servir para explicitar e botar a nu graves tensões existentes na ordem e hierarquias tradicionais. Os movimentos messiânicos podem ser os veículos desse tipo de fenômenos.
Por outro lado, também nas modernas sociedades industriais individualistas encontram-se dimensões e instâncias desindividualizadoras. Ou seja, a multiplicidade de instituições da sociedade complexa contemporânea conduz esquematicamente a duas alternativas básicas. A individualização radical pode surgir exatamente da necessidade de o agente empírico ser obrigado a mover-se e manipular instituições, dimensões e mundos diferentes e possivelmente contraditórios. Outra possibilidade, diante da angústia da opção e do desmapeamento é o mergulho em um desses mundos cujos estereótipos podem ser o "cientista louco", o "burocrata ritualista", a "beata", etc.
Em toda a sociedade
existe, a possibilidade da individualização. Em algumas será
mais valorizada e incentivada do que em outras. De qualquer forma o processo
de individualização não se dá fora de normas
e padrões por mais que a liberdade individual possa ser valorizada.
Quando vai de encontro às fronteiras simbólicas de determinado
universo cultural - ou as ultrapassa -, Ter-se-à então, provavelmente,
uma situação de desvio com acusações e, em
certos casos, estigmatização.. Ou seja, há regras
para a individualização, mais ou menos explicítas.
6. PROJETO E CAMPO DE POSSIBILIDADES.
Logo, a possibilidade da existência de projetos individuais está vinculada a como, em contextos sócio-culturais específicos, se lida com a ambiguidade fragmentação-totalização. Quando, como e até onde são legitimados projetos específicos individuais são perguntas fundamentais para possibilitar um diálogo entre cientistas sociais e psivcológos, psicanalistas, etc.
Se o indivíduo é tomado como dado da natureza, unidade real, nada mais lógico do que pressupor a possibilidade de projetos individuais. Já se o indivíduo é percebido como tendo uma dimensão fabricada culturalmente, que é acrescentada ao agente empírico, há que relativizar a noção de projeto individual.
Coloca-se como problema a relação entre projetos individuais e os círculos sociais em que o agente se inclui ou participa. A idéia central é que, primeiramente, reconhece-se não existir um projeto individual puro. Os projetos são elaborados e construídos em função de experiências sócio-culturais, de um código, de vivências e interações interpretadas.
De qualquer forma, o projeto não é um fenômeno puramente interno, subjetivo. Formula-se e é elaborado dentro de um campo de possibilidades, circunscrito histórica e culturalmente, tanto em termos da própria noção de indivíduo como dos temas, prioridades e paradigmas culturais existentes. Há uma linguagem, um código através dos quais os projetos podem ser verbalizados com maior ou menor potencial de comunicação. Portanto, o projeto é algo que pode ser comunicado.
A racionalidade de um projeto é relativa desde que se alimenta de determinadas experiências culturais. Sua maior ou menor eficácia está, basicamente, circunscrita a determinado quadro sócio-histórico. O projeto e a conduta estão sempre referidos a outros projetos e condutas localizáveis no tempo e no espaço. Por isso fundamental entender a natureza e o grau maior ou menor de abertura ou fechamento das redes sociais em que se movem os atores.
Os padrões
de normalidade legitimarão ou não dentro de uma situação
particular as condutas e ações individuais. Assim, uma sociologia
dos projetos tem de ser, sociologia das emoções. Os antropólogos
lidam constantemente com essa problemática.
7. PAPÉIS SOCIAIS, REDES DE RELAÇÕES E EXPERIÊNCIA CULTURAL
O projeto, sendo consciente, envolve algum tipo de cálculo e planejamento, mas alguma noção culturalmente situada, de riscos e perdas que em termos estritamente individuais, quer em termos grupais. O relativismo cultural permite contextualizar os valores envolvidos em função de experiência sócio-históricas particulares.
Quanto mais
exposto estiver o ator a experiências diversificadas, quanto mais
tiver de dar conta de ethos e visões de mundo contrastantes, quanto
menos marcada será a sua autopercepção de individualidade
singular. Por sua vez, a essa consciência da individualidade - fabricada
dentro de uma experiência cultural específica - corresponderá
uma maior elaboração de um projeto.
8. PROJETO INDIVIDUAL E PROJETO SOCIAL
Em uma sociedade complexa moderna os mapas de orientação para a vida social são particularmente ambíguos, tortuosos e contraditórios. A construção da identidade e a elaboração de projetos individuais são feitas dentro de um contexto em que diferentes mundos ou esferas da vida social se interpenetam, se misturam e muitas vezes entram em conflito.
A estabilidade e a continuidade desses projetos supra-individuais dependerão de sua capacidade de estabelecer uma definição de realidade convincente, coerente e gratificante. Pode-se dizer que em uma sociedade complexa moderna coexistem n propjetos em diferentes graus de desenvolvimento e complexidade, alguns praticamente imperceptíveis, outros explicitados e anunciados.
Os projetos constituem uma dimensão da cultura, na medida em que sempre são expressão simbólica. Sendo conscientes e potencialmente públicos, estão diretamente ligados à organização social e aos processos de mudança social.
Em toda a sociedade complexa podem ser identificados grupos, que através de suas trajetórias e posição em relação ao resto da sociedade, têm mais possibilidades de divulgar seus projetos. Sem dúvida há todo um conjunto de variáveis. Mas é importante verificar o potencial intrínseco de um projeto social que só pode ser compreendido através do conjunto de símbolos a que está associado.
VELHO, Gilberto - Individualismo e Cultura. Rio de Janeiro, Zahar. 1987
As chamadas ciências sociais estudam fenômenos complexos, situados em planos de causalidade e determinação complicados. A matéria-prima das ciências sociais, assim, são eventos com determinações complicadas e que podem ocorrer em ambientes diferenciados tendo, por causa disso, a possibilidade de mudar seu significado, de acordo com o autor, as relações existentes num dado momentos e, ainda, com a sua posição numa cadeia de eventos anteriores e posteriores. Os eventos que servem de foco ao cientista social são fatos que não estão mais ocorrendo entre nós ou que não podem ser reproduzidos em condições controladas.
Tudo indica que entre as ciências sociais e as ciências naturais temos uma relação invertida. Nas ciências naturais existem problemas formidáveis no que diz respeito à aplicação e até mesmo na divulgação destes estudos. No caso do cientista social, as condições de percepção, classificação e interpretação são complexos, mas os resultados em geral não têm consequências na mesma proporção da ciência natural. São poucas as teorias sociais que acabaram tornando-se credos ideológicos. As chamadas teorias sociais são racionalizações ou perspectivas mais acuradas para problemas que percebemos. Os fatos que formam a matéria-prima das ciências sociais são, pois, fenômenos complexos, geralmente impossíveis de serem reproduzidos, embora possam ser observados. Podemos observar funerais, aniversários, rituais de iniciação, proclamações de leis, mas, além de não poder reproduzir tais eventos, temos de enfrentar a nossa própria posição, história biográfica, educação, interesses e preconceitos. O processo de acumulação que tipifica o processo científico é algo lento em todos os ramos do conhecimento, mas muito mais lento nas chamadas ciências do homem.
Mas de todas as diferenças, a mais fundamental é a seguinte: nas ciências sociais trabalhamos com fenômenos que estão bem perto de nós, pois pretendemos estudar eventos humanos que nos pertencem integralmente. Os homens não se separam por meio de espécies, mas pela organização de suas experiências, por sua história e pelo modo com que classificam sua realidades internas e externas. Apesar das diferenças e por causa delas, nós sempre nos reconhecemos nos outros, e a distância passa a ser o elemento fundamental na percepção da igualdade entre os homens. Um exemplo é o caso dos nomes, no qual é uma forma de sistema de diferenciação entre os grupos e indivíduos. A história da Antropologia social é a história de como esses diferentes sistemas foram percebidos e interpretados como formas alternativas - soluções e escolhas - para problemas comuns colocados pelo viver numa sociedade de homens.
No caso das ciências sociais o objeto é muito mais que isso, ele tem também o seu centro, o seu ponto de vista e as suas interpretações que, a qualquer momento, podem competir e colocar de quarentena as nossas mais elaboradas explanações. A raiz das diferenças entre ciências naturais e ciências sociais fica localizada, portanto, no fato de que a natureza não pode falar diretamente com o investigador. Sabemos que a disciplina tem pelo menos três esferas de interesse claramente definidas e distintas. Uma delas é o estudo do homem enquanto ser biológico, dotado de um aparato físico e uma carga genética. Esse é o domínio ou o campo da chamada Antropologia Biológica. O especialista em Antropologia biológica dedica-se à análise das diferenciações humanas utilizando esquemas estatísticos, dando muito mais atenção ao estudo das sociedade de primatas superiores, à especulação sobre a evolução biológica do homem, ou está dedicado ao entendimento que permitam explicar diferenciações de populações e não mais de raças.
A segunda esfera de trabalho da Antropologia em geral diz respeito ao estudo do homem no tempo, através de monumentos, restos de moradas, documentos, armas, obras de arte e realizações técnicas que foi deixando no seu caminho. Essa esfera de trabalho antropológico é conhecida como Arqueologia. A arqueologia é uma Antropologia social, só que está debruçada em cima de estudos de um sistema de ação social já desaparecido. O arqueólogo estuda esses resíduos deixados por uma sociedade, depois que seus membros pereceram. E sua tarefa é a de reconstruir o sistema agora que ele somente existe por meio de algumas de suas cristalizações. O arqueólogo trabalha por meio de especulações e deduções, numa base comparativa, balizando sistematicamente seus achados do passado com o conhecimento obtido pelo conhecimento contemporâneo de sociedades com aquele mesmo grau de complexidade social.
Os valores sociais têm sido chamados de cultura. A esfera da Antropologia cultural é o plano complexo segundo o qual a cultura não é somente uma resposta específica. A antropologia social, ou Etnologia, permite descobrir a dimensão da cultura e da sociedade, destacando os seguintes planos: Um plano instrumental e um plano cultural ou social. O plano instrumental é um plano das coisas feitas ou dadas e a sua concepção e importância está muito ligada à perspectiva segundo a qual o homem foi feito aos poucos: o primeiro plano físico, depois o plano social.
No plano cultural, a Etnologia e Antropologia cultural permitem tomar conhecimento, o mundo humano forma-se dentro de um ritmo dialético com a natureza. Foi respondendo à natureza que o homem modificou-se e assim inventou um plano, reformulando a própria natureza. Vê-se que a resposta cultural é muito diferente da instrumental. Ela permite a superação da necessidade e também o estabelecimento de uma diferenciação por causa mesmo da necessidade.
Temos em Antropologia pelo menos três planos de consciência. Pode-se incluir um quarto plano, o mais fundamental de todos. Refere-se ao plano da lingüística, do estudo da língua, esfera de consciência absolutamente básico na transmissão. O estudo da Antropologia biológica situa a questão de uma consciência física no estudo do homem. No plano da consciência que faz parte da Antropologia biológica, especulamos sobre mudanças intrínsecas do corpo e cérebro humanos. A Antropologia biológica nos coloca diante dos espaços primordiais, dos gestos decisivos, do tempo que corre numa escala fria, lenta, infinita.
O estudo da Antropologia Cultural e/ou Social abre as portas de realidade diversas. A Arqueologia nos remete ao mundo de um tempo onde os acontecimentos passam a ser decisivos não mais em escala da espécie humana como uma totalidade, mas como elementos que permitem diferenciar civilizações, sistemas produtivos e regimes políticos específicos. De fato, na medida em que se deixa o tempo biológico e penetra-se no tempo arqueológico, começo a vislumbrar a sociedade e a cultura.
As diferenças entre as Antropologias e a Antropologia Social dizem respeito fundamentalmente à descoberta do social como um plano dotado de realidade, regras e de uma dinâmica própria. Fatores biológicos e fatores naturais são utilizados muitas vezes como sinônimos, designando o mundo natural como uma realidade separada e, às vezes, em oposição à chamada realidade humana ou social. Numa palavra, o homem está em oposição à natureza numa atitude que não é nada contemplativa, mas ativa. Ela visa o seu domínio e controle, o seu comando. O problema sociológico nunca será resolvido adequadamente pela visão utilitarista da cultura, mas de uma posição onde a consciência terá que ser discutida e levada em consideração.
Como quarto ponto, temos que a visão do social ancorada no biologismo ou no naturalismo, e atualizada na Antropologia moderna, ou visão instrumentalista, utilitarista ou evolucionista da cultura, reduz as diferenças sociais a respostas culturais, deixando de inquirir sobre a diversidade humana. Podemos dizer que o biológico diz respeito ao interno, ao que não é controlado pela consciência e pelas regras inventadas. O social é o oposto. A ação social é toda a ação que não pode ser adequadamente explicada em termos de fatores de hereditariedade e do ambiente não-humano. O social é tudo aquilo que independe da natureza interna ou externa, sendo mais adequadamente tratados quando são estudados uns em relação aos outros. O social não decorre de um impulso natural, nem de uma resposta a um estímulo externo, nem de reação à condição básica de que os homens têm uma existência individual.
Existe uma visão muito importante no que diz respeito as diferenças entre a sociedade e a cultura. Sem uma tradição (ou seja, todo o processo que passa de uma geração à outra, permitindo que se possa diferenciar uma comunidade da outra), uma coletividade pode viver ordenadamente, mas não tem consciência do seu estilo de vida. E ter consciência é poder ser socializado, isto é, é se situar diante de uma lógica de inclusões necessárias e exclusões fundamentais. A consciência de regras é uma forma de presença social. Como conseqüência disto, a tradição viva e a consciência social subtendem responsabilidade. Uma tradição viva é um conjunto de escolhas que necessariamente excluem formas de realizar tarefas e de classificar o mundo.
Ter tradição significa vivenciar as regras de modo consciente, colocando-as dentro de uma forma qualquer de temporalidade. A tradição torna as regras passíveis de serem vivenciadas, abrigadas e possuídas pelo grupo que as inventou e adotou. Sociedades sem tradição são sistemas coletivos sem cultura.
Podemos dizer que sociedades sem cultura apenas acontecem no caso dos "animais sociais". Pode haver cultura sem sociedade, mas não uma sociedade sem cultura. Sociedade e cultura, o primeiro indica conjuntos de ações padronizadas; o segundo expressa valores e ideologias que fazem parte da outra ponta da realidade social ( a cultura ). Uma se reflete na outra, mas nunca uma pode reproduzir a outra. A cultura trabalha sempre com formas puras que se ajustam ou não à sua reprodução concreta no mundo da sociedade.
A perspectiva da realidade humana a partir da noção de sociedade remete inevitavelmente a uma orientação sincrônica, integrada, sistêmica e concreta de pessoas, grupos, papéis e ações sociais que são muitas vezes vistos como um organismo.
A apreensão que os homens têm do mundo é antropocêntrica. O antropocentrismo é a condição inicial e final de toda a relação do homem com o universo. É o ponto de vista a partir do qual inexoravelmente construímos nossos mundos e nossas verdades. Assim, a questão de saber se aquilo que povoa as mentes humanas - as sensações, as percepções - pertence a um mundo de idéias platônicas ou foi gravado em passivas mentes humanas pela experiência, não tem mais sentido: está agarrado ao corpo.
A cultura é a lente humana por excelência, e ser antropocêntrico é enxergar o mundo através dela. O homem é capaz de independer em larga medida das programações orgânicas, podendo convencionar socialmente sua própria visão de mundo. A cultura é apenas um conceito totalizador, um artifício de raciocínio; mas inúmeras culturas, correspondentes à multiplicidade dos grupos humanos e a seus momentos históricos. A cultura é uma abstração, um artefato de pensamento por meio do qual se faz economia da extraordinária diversidade que os homens apresentam entre si. A cultura é também o que os distingue das demais formas vivas.
As culturas não se definem apenas por seus vocabulários, mas principalmente pelas regras que regulam a sintaxe das relações entre os seus elementos. As maneiras pelas quais as diferentes culturas organizam essas impressões para fins comunicativos exibem notáveis diferenças.
No atual estudo do conhecimento antropológico, não há duvida de que cada cultura se aproveite dos órgãos dos sentidos para codificar o mundo. Mas seria muitíssimo importante que se observasse que cada sociedade parece codificar os próprios sentidos e as relações entre eles. Se os canais pelos quais os homens captam informações sobre o mundo exterior estão culturalmente codificados, com muito mais razão podemos compreender que o estejam as categorias intelectuais por intermédio das quais essas informações são processadas.
A apropriação do espaço é uma das maneiras por que mais nitidamente uma sociedade exibe sua organização: projeta-se. Toda uma antropologia da significação das relações espaciais seria possível a partir da consideração de que o espaço é algo que cada cultura convenciona e inventa. Assim, na medida em que são sistemas de codificação, cada cultura equipa os homens como uma lente específica, através da qual transparecerá um mundo particular. Ser homem é viver em um desses mundos específicos: é vivenciar a capacidade humana de diferir. Os elementos dos códigos se substituem aos componentes da realidade e o modo de os articular gramaticalmente se sobrepõe à "organização natural" do real.
A conseqüência disso é que o mundo que apareceu antes do homem não se limita a ser filtrado e transformado pela lente do antropocentrismo. Todos os homens vêem o mundo também etnocentricamente, isto é, através das lentes de uma cultura específica das lentes de sua cultura.
O etnocentrismo é uma condição universal da humanidade. Compreende-se isso facilmente, pois simbolicamente esta é uma maneira positiva de cada sociedade afirmar para si a própria identidade. A lógica do etnocentrismo consiste fundamentalmente em isolar uma característica da própria cultura e elevá-la à condição de definidor de "natureza humana", parâmetros ao qual os demais seres humanos deverão se ajustar (ou não), com graus diferenciados de desconforto. Uma característica ligada ao etnocentrismo é o etnocentrismo invertido. Ao invés de colocar-se diante do mundo na posição definida pela sua própria cultura, enxergando-o através de suas próprias lentes, o "inferior", vê-se então como "realmente inferior" e ao "outro" como "naturalmente superior". O etnocentrismo invertido não é uma experiência rara: padecem dele com freqüência vários grupos indígenas incluídos na órbita da sociedade ocidental, assim como muitas populações. Também poderiam ser incluídas as atitudes afetivas e intelectuais que consistem em atribuir ao "outro" uma existência bucólica e romântica.
Um corolário importante dos princípios em que se baseia a lógica do etnocentrismo é que o "outro" não tem alternativa, aos olhos de uma sociedade qualquer, entre o caos e a simplicidade. Em contrapartida, toda cultura parecerá "organizada" e complexa a quem a observa a partir de um ponto de vista interior. Relativização é o conceito que designa a atitude intelectual diferente da do etnocentrismo. É o esforço de compreender a significação dos comportamentos, pensamentos e sentimentos do "outro", nos termos da cultura do "outro". A relativização é o procedimento antropológico por excelência, concebendo-se a construção histórica da antropologia como a dos progressos na direção da possibilidade de relativizar. A tarefa relativizadora da antropologia seria a de denunciar as lentes como lentes, lembrando que nenhuma delas é única, melhor, superior, intransformável ou insubstituível.
Lewis Henry Morgan
Morgan (1818-1881) é considerado como o fundador da Antropologia Americana. Morgan nasceu no Estado de Nova York onde estudou Direito no Union College em Schenectady, e em seguida começou a praticar a advocacia, a política e os estudos antropológicos em Rochester. Quando jovem, Morgan fundara a Ordem do Nó Górdio, em Aurora, organizada em torno de idéias da mitologia grega, ritos secretos, preparativos secretos e outras armadilhas semelhantes. Um pouco depois, a sociedade foi reorganizada em torno do ritual e mitologia dos índios americanos como a Grande Ordem dos Iroqueses. Ao recolher informações sobre os Iroqueses, Morgan interessou-se pelos próprios Iroqueses e começou a reunir material para objetivos mais sérios.
Ao trabalhar com os iroqueses, Morgan descobrira coisas bastantes "peculiares" sobre as expressões de parentesco usadas em relação aos vários parentes. Um iroquês chamava a irmã de mãe pelo mesmo nome usado para a própria mãe. Também o irmão do pai - na verdade, vários outros parentes masculinos paternais - eram chamados pela mesma palavra usada para o pai.
Morgan procurou uma explicação para os padrões de terminologia dos iroqueses, e julgou tê-la encontrado na idéia de "sobreviventes". Ou seja, se todas as sociedades humanas haviam atravessado uma fase evolucionária de "casamento de grupo" - a união de vários homens com várias mulheres - os iroqueses chamavam várias pessoas de "mãe" e vários homens de "pai" como um resquício daquela fase superada da sociedade. Morgan recolheu informações sobre os sistemas de parentesco de muitas partes do mundo e teceu-as dentro dos padrões da Teoria do Iluminismo, sobre o progresso humano, acrescentando muitas inovações próprias. O quadro a seguir mostra os principais estágios da evolução cultural, segundo o livro de Morgan, Ancient Society.
As premissas filosóficas do sistema evolucionário de Morgan são semelhantes às idéias subjacentes aos escritos da maioria dos antropólogos conhecidos do século XIX. Em geral, julgavam que a evolução se processa do simples para o complexo, do desorganizado para o organizado e, especialmente, que tal evolução está diretamente associada ao melhoramento.
Em 1879, ele foi eleito presidente da American Association for the Advancement of Science, porém uma enfermidade o impediu de continuar no cargo, falecendo em 1881.
Edward B. Taylor
Edward Taylor foi na Inglaterra o que Morgan foi nos Estados Unidos. Em seu livro mais importante, Primitive Culture (1871), desenvolveu sua versão da história da evolução, concentrando-se especialmente na religião. Acreditava que a religião primitiva mais antiga fora o "animismo" - a crença de que as pessoas, animais e mesmo árvores e pedras eram feitas de alma. A origem dessa crença, deve ser procurada no desejo que tem o homem de explicar, racionalmente o que acontece no sonho e na morte.
Taylor e os evolucionistas pretendiam, por sua vez, que povos primitivos como os australianos são exemplos do início rude da humanidade e que em toda a parte o progresso se afasta da selvageria, dirigindo-se para a civilização. E a partir desses estudos de Tylor, muitos outros estudiosos da antropologia surgiram como John Lubbock que criou expressões como neolítico e paleolítico, entre outros que se sucederam reforçando as palavras de Tylor ao afirmar que a antropologia se desenvolveria "de um caminho marginal da verdade até a época em que suas decisões seriam buscadas pelos Governos."
Porém existe uma corrente que já não aceita isso, pois afirma que é inevitável o envolvimento com o objeto de estudo.
A antropologia utiliza métodos qualitativos. Existe uma participação ativa, de contato, aberta, pessoal. Há certas dimensões na sociedade em que se faz necessário contato, vivência durante um período de tempo, pois existem aspectos de uma cultura que não estão a amostra e que necessita observação e empatia.
Existe com isso, um problema complexo que é: a distância social e a distância psicológica. Da Matta diz que a antropologia quer transformar o "exótico em familiar e o familiar em exótico". Simmel diz que numa mesma sociedade existe uma distância social e psicológica. E no entanto pode não existir em outras sociedades quando se está no mesmo status. Ex: A nobreza européia (aonde existe um choque deles com os camponeses de sua sociedade). O que se quer dizer, que podemos estar em sociedades distintas e ter afinidades e pessoas da mesma sociedade não ter essa mesma característica.
Normalmente o aparecimento do Estado moderno é associado ao desenvolvimento da burguesia, ao fortalecimento do nacionalismo.
Da Matta è o que sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas não é necessariamente conhecido e o que não vemos e encontramos pode ser exótico mas, até certo ponto conhecido. Para Da Matta não ocorre estranheza, não-reconhecimento ou até choque cultural quando as pessoas estão em uma sociedade complexa e a realidade e as categorias sociais estão hierarquizadas.
Gilberto Velho è As pessoas tem um mapa em que faz com que se identifique ou familiarize, tendo então expectativas de resposta, com os cenários e situações sociais de nosso cotidiano.
Mas o “Brasil” com ‘B’ maiúsculo é algo muito mais complexo. É país, cultura, local geográfico, fronteira e território reconhecidos internacionalmente, e também casa, pedaço de chão calçado com o calor de nossos corpos, lar, memória e consciência de um lugar com o qual se tem uma ligação especial, única, totalmente sagrada. É igualmente um tempo singular cujos eventos são exclusivamente seus, e também temporalidade que pode ser acelerada na festa do carnaval; que pode ser detida na morte e na memória e que pode ser trazida de volta na boa recordação da saudade.
Sociedade onde pessoas seguem certos valores e julgam as ações humanas dentro de um padrão somente seu. Onde quer que haja um brasileiro adulto, existe com ele o Brasil e, no entanto - tal como acontece com as divindades -, será preciso produzir e provocar a sua manifestação para que se possa sentir sua concretude e poder. O mesmo ocorre com as sociedades. Geralmente, estamos habituados a tomar conhecimento das sociedades - e, sobretudo, da nossa sociedade - por meio de suas manifestações mais oficiais e mais nobres. Para essa perspectiva, o Brasil deve ser procurado nos rituais nobres dos palácios de justiça, dos fóruns, das câmaras e das pretorias - onde a letra clara da lei define suas instituições mais importantes; mas também do jeitinho malandro que soma a lei com a pessoa na sua vontade escusa de ganhar, embora a regra fria e dura como o mármore da justiça não a tenha tomado em consideração.
Note-se que se trata de uma pergunta relacional que, tal como faz a própria sociedade brasileira, quer juntar e não dividir. Queremos descobrir como é que ele se ligam entre si; como é que cada um depende do outro, e como os dois formam uma realidade única que existe concretamente naquilo que chamamos de “pátria”. O primeiro “brasil” é dado nas possibilidades humanas, mas que o segundo Brasil é feito de uma combinação especial dessas possibilidades universais. No fundo, essa questão do relacionamento dos universais de qualquer sistema com um sistema específico é das mais apaixonantes de quantas existem no panorama das Ciências Sociais. Trata-se, sempre, da questão da identidade. De saber quem somos e como somos; de saber por que somos.
A construção de uma identidade social, então, como a construção de uma sociedade, é feita de afirmativas e de negativas diante de certas questões. Tudo isso nos leva a descobrir que existem dois modos básicos de construir a identidade brasileira: o de fazer o brasil, Brasil... Num deles, utilizamos dados precisos: as estatísticas demográficas e econômicas, os dados do PIB, PNB e os números da renda per capita e da inflação, quer sempre nos assusta e apavora. Falamos também dos dados relativos ao sistema político e educacional do país, apenas para constatar que o Brasil não é aquele país que gostaríamos que fosse. Essa classificação permite construir uma identidade social moderna, de acordo com os critérios estabelecidos pelo Ocidente europeu a partir da Revolução Francesa e da Revolução Industrial.
Mas, no caso do Brasil e de outras sociedade, o problema é que existe outro modo de classificação. A identidade se constrói duplamente. Por meio dos dados quantitativos, onde somos sempre uma coletividade que deixa a desejar; e por meio de dados sensíveis e qualitativos, onde nos podemos ver a nós mesmos como algo que vale a pena. Aqui, o que faz o brasil, Brasil não é mais a vergonha do regime ou a inflação galopante e “sem vergonha”, mas a comida deliciosa, a música envolvente, a saudade que humaniza o tempo e a morte, e os amigos que permite resistir a tudo...
Será
preciso, portanto, discutir o Brasil como uma moeda. Como algo que tem
dois lados. E mais: como uma realidade que nos tem iludido, precisamente
porque nunca lhe propusemos esta questão relacional e reveladora:
afinal de contas, como se ligam as duas faces de uma mesma moeda?
Capítulo
II
A casa,
a rua e o trabalho
Observe-se uma cidade brasileira. Nela, há um nítido movimento rotineiro. Do trabalho para casa, de casa para o trabalho. A casa e a rua interagem e se complementam num ciclo que é cumprido diariamente por homens e mulheres, velhos e crianças. Há uma divisão clara entre dois espaços sociais fundamentais que dividem a vida social brasileira: o mundo da casa e o mundo da rua - onde estão, teoricamente, o trabalho, o movimento, a surpresa e a tentação.
É claro que a rua serve também como espaço típico do lazer. Mas ela, como um conceito inclusivo e básico da vida social - como “rua” - é o lugar do movimento, em contraste com a calma e a tranqüilidade da casa, o lar e a moradia. Seu núcleo é constituído de pessoas que possuem a mesma substância - a mesma carne, o mesmo sangue e consequentemente as mesmas tendências. Tal substância física se projeta em propriedades e muitas outras coisas comuns. A idéia de um destino em conjunto e de objetos, relações, valores (as chamadas “tradições de família”) que todos do grupo sabem que importa resguardar e preservar. E cuida-se de seu bem-estar porque a idéia de residência é um fato social totalizante, conforme diria Márcel Mauss. Ou seja: quando falamos da “casa”, não estamos nos referindo simplesmente a um local onde dormimos, comemos ou que usamos para estar abrigados do vento, do frio ou da chuva. Mas - isto sim - estamos nos referindo a um espaço profundamente totalizado numa forte moral. Uma dimensão da vida social permeada de valores e de realidades múltiplas.
Não se trata de um lugar físico, mas de um lugar moral: esfera onde nos realizamos basicamente como seres humanos que têm um corpo físico, e também uma dimensão moral e social. Assim, na casa, somos únicos e insubstituíveis. Temos um lugar singular numa teia de relações marcadas por muitas dimensões sociais importantes, como a divisão de sexo e de idade. Por ser um espaço assim inclusivo e, simultaneamente, exclusivo, a casa pode ter também seus agregados. Pessoas que vivem no domicílio, mas que não são parte da família. Um parente que veio do Norte em busca de médico ou segurança psicológica; um amigo em dificuldade financeira ou crise matrimonial; um velho empregado que não tem para onde ir nem lugar para ficar; um compadre que precisa de emprego e necessita falar com uma autoridade da grande cidade, etc.
Como espaço moral importante e diferenciado, a casa se exprime numa rede complexa e fascinante de símbolos que são parte da cosmologia brasileira, isto é, de sua ordem mais profunda e perene. Assim, a casa demarca um espaço definitivamente amoroso onde a harmonia deve reinar sobre a confusão, a competição e desordem. Em casa portanto, tenho tudo e sou reconhecido nos meus mais ínfimos desejos e vontades. Sou membro perpétuo de uma corporação (a família brasileira) que não morre e que, com sua rede de compadres, empregados, servidores e amigos, tem muito mais vitalidade e permanência do que o governo e a administração pública, que sempre competem com ela pelo respeito do cidadão. Digo que a casa, por tudo isso, provê uma leitura especial do mundo brasileiro. Quer dizer, quando observamos que a casa contém todas essas dimensões, temos que nos dar conta de que vivemos numa sociedade onde casa e rua são mais que meros espaços geográficos. São modos de ler, explicar e falar do mundo.
Mas como é o espaço da rua? Bem, já sabemos que ela é local de “movimento”. Como um rio, a rua se move sempre num fluxo de pessoas indiferenciadas e desconhecidas que nós chamamos de “povo” e de “massa”. Falamos da rua como um lugar de “luta” de batalha, espaço cuja crueldade se dá no fato de contrariar frontalmente todas as nossas vontades. Daí porque dizermos que a rua é equivalente à dura realidade da vida. O fluxo da vida, com suas contradições, durezas e surpresas, está certamente na rua, onde o tempo é medido pelo relógio e a história se faz acrescentando evento a evento numa cadeia complexa e infinita. Na rua não há teoricamente, nem amor, nem consideração, nem respeito, nem amizade. É local perigoso, conforme atesta o ritual aflitivo e complexo que realizamos quando um filho nosso sai sozinho, pela primeira vez, para ir ao cinema, ao baile ou à escola.
A rua compensa a casa e a casa equilibra a rua. No Brasil, casa e rua são como os dois lados de uma moeda. Por tudo isso, o universo da rua - tal como ocorre com o mundo da casa - é mais que um espaço físico demarcado e universalmente reconhecido. Pois para nós, brasileiros, a rua forma uma espécie de perspectiva pela qual o mundo pode ser lido e interpretado. Aqui, quem governa não é mais o pai ou a mãe, o marido ou a mulher. O comando é dado à autoridade que governa com a lei, a qual torna todo mundo igual no propósito de desautoridade e até mesmo explorar de forma impiedosa. Daí por que, na rua, tendemos a ser todos revolucionários e revoltados, membros destituídos de uma massa de anônimos trabalhadores.
Mas além
disso tudo, a rua é um espaço que permite a mediação
pelo trabalho - o famoso “batente”, nome já indicativos de um obstáculo
que temos que cruzar, ultrapassar ou tropeçar. O fato é que
não temos a glorificação do trabalhador, nem a idéia
de que a rua e o trabalho são locais onde se pode honestamente enriquecer
e ganhar dignidade. Para nós, esses espaços e essa mediação
entre casa e rua pelo trabalho são algo muito complexo. O fato,
porém, é que a concepção de trabalho fica confundida
num sistema onde as mediações entre a casa e a rua são
tão complexas. São também espaços de onde se
pode julgar, classificar, medir, avaliar e decidir sobre ações,
pessoas, relações e moralidades. Compensando-se mutuamente
e sendo ambas complementadas pelo espaço do “outro mundo”, onde
residem os espíritos e deuses, casa e rua formam espaços
básicos através dos quais circulamos na nossa sociabilidade.
Capítulo
III
A ilusão
das relações sociais
No século XVIII, Antonil percebeu algo interessante numa sociedade dividida entre senhores e escravos, e escreveu: “O Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos”. Na verdade, penso que, caso se queira ter uma compreensão mais profunda e original das relações raciais que seus sentidos velados, considerando todas as suas implicações morais e políticas.
Realmente, não custa relembrar que as teorias racistas européias e norte-americanas não eram tanto contra o negro ou o amarelo, que eram nítida e injustamente inferiorizados relativamente ao branco, mas que também eram vistos como donos de poucas qualidades positivas enquanto “raça”. O problema maior dessas doutrinas, o horror que declaravam, era, isso sim, contra a mistura ou a miscigenação das “raças”. Saber por que tais teorias tinham esse horror à miscigenação é conduzir a curiosidade intelectual para um dos pontos-chaves que distinguem e esclarecem o “racismo à européia” ou “à americana” e o nosso conhecido, dissimulado e disseminado “racismo à brasileira”.
Noto, primeiramente, que Antonil não fala de branco, negro e mulato numa equação biológica. Ao contrário, com eles constrói uma associação social ou normal, pois que relaciona o branco com o purgatório, o negro com o inferno e o mulato com o paraíso. Creio ser a primeira vez que se estabelece um triângulo para o entendimento da sociedade brasileira e isso, sustento, é significativo e importante. O Brasil não é um país dual onde se opera somente com uma lógica do dentro ou fora; do certo ou errado; do homem ou mulher; do casado ou separado; de Deus ou Diabo, etc. Ao contrário, no caso de nossa sociedade, a dificuldade parece ser justamente a de aplicar esse dualismo de caráter exclusivo; ou seja, uma oposição que determina a inclusão de um termo e a automática exclusão do outro, como é comum no racismo americano ou sul-africano. Nós temos um conjunto infinito e variado de categorias intermediárias em que o mulato representa uma cristalização perfeita.
Por que não há duvida alguma de que ele percebeu o valor positivo que associamos ao intermediário, a categoria que fica no meio, ao ser situado entre os extremos e que, por isso mesmo, permite a sua associação e a negação de suas tendências e características antagônicas. Tal associação permite dizer que, no Brasil, ao contrário do que aconteceu em outros países, não ficamos com uma classificação racial formalizada em preto e branco. Desse modo, o nosso preconceito seria muito mais contextualizado e sofisticado do que o norte-americano, que é direto e formal.
O fato de existir uma legislação rígida, racista e dualística nos Estados Unidos, revela esse dualismo claro que indica sem maiores embaraços quem está dentro ou fora, quem tem direitos e quem não tem; quem é branco ou preto. Mas aqui, conforme sabemos, há uma radical exclusão de todas as categorias intermediárias, que são absorvidas, com todos os riscos e penalidades, às duas categorias principais, em franca oposição e em aberta distinção.
Dentro de uma sociedade que tentou eliminar a tradição imemorial das leis implícitas, aquelas que podiam ser aplicadas ou não, que podiam ser lembradas ou não, que podiam variar de acordo com quem praticava o crime ou não, o mulato, o intermediário, representava a negação viva de tudo aquilo que a lei estabelecia positivamente. Ele mostrava o pecado e o perigo da intimidade entre camadas sociais que deveriam permanecer diferenciadas, mesmo que fossem teoricamente consideradas iguais. O que se busca eliminar é a relação, pois a ênfase da ideologia social e dos valores é sempre no papel do indivíduo como centro e a razão de ser da sociedade. A igualdade jurídica e constitucional dos membros da sociedade americana forma uma poderosa tradição que chegou àquele país com os Puritanos ingleses e se consolidou nas doutrinas liberais que marcaram o nascimento e a expansão da sociedade americana como nação. Nesse sistema de indivíduos teoricamente “iguais”, a experiência da escravidão e das hierarquias que ela certamente determina por sua própria natureza enquanto sistema. Foi certamente muito mais problemática do que no caso do Brasil.
Primeiro, pela existência de tradição igualitária, que no universo social anglo-saxão era muito mais forte que em Portugal ou no Brasil. Tal ideologia social nega as relações sociais e, com isso, a presença das redes imperativas de amizade e de parentesco que sustentavam a chamada moral tradicional; ou seja: aquela moralidade que afirma a importância do todo ( ou da sociedade ) sobre o indivíduo. Pois bem, todos esses fatores tornavam difícil a convivência da escravidão com essa ideologia que, no caso dos Estados Unidos, é dominante. Há um norte igualitário e individualista, que não pode admitir a escravidão; e um Sul hierarquizado, aristocrático e relacional, onde existe uma sociedade cheia de nuances, parecido nisso tudo com o Brasil.
Tudo isso nos conduz a algumas correlações interessantes que permitem elucidar o caso do “racismo à brasileira” e do nosso famoso triângulo racial. Realmente, estou convencido de que a sociedade brasileira ainda não se viu como sistema altamente hierarquizado, onde a posição de negros, índios e brancos está ainda tragicamente de acordo com a hierarquia das raças. Numa sociedade onde não há igualdade entre as pessoas, o preconceito velado é forma muito mais eficiente de discriminar pessoas de cor, desde que elas fiquem no seu lugar e “saibam” qual é ele.
Finalmente,
temos um “triângulo racial” que impede uma visão histórica
e social da nossa formação como sociedade. O fato contundente
de nossa história é que somos um país feito por portugueses
brancos e aristocráticos, uma sociedade hierarquizada e que foi
formada dentro de um quadro rígido de valores discriminatórios.
A mistura de raças foi um modo de esconder a profunda injustiça
social contra negros, índios e mulatos, pois, situando no biológico
uma questão profundamente social, econômica e política,
deixava-se de lado a problemática mais básica da sociedade.
É mais fácil dizer que o Brasil foi formado por um triângulo
de raças, o que nos conduz ao mito da democracia racial, do que
assumir que somos uma sociedade hierarquizada, que opera por meio de gradações
e que, por isso mesmo, pode admitir, entre o branco superior e o negro
pobre e inferior, uma série de critérios de classificação.
É claro que podemos ter uma democracia racial no Brasil. Mas ela,
conforme sabemos, terá que estar fundada primeiro numa positividade
jurídica que assegure a todos os brasileiros o direito básico
de toda a igualdade: o direito de ser igual perante a lei. Na nossa ideologia
nacional, temos um mito de três raças formadoras. Não
se pode negar o mito. Mas o que se pode indicar é que o mito é
precisamente isso: uma forma sutil de esconder uma sociedade que ainda
não se sabe hierarquizada e dividida entre múltiplas possibilidades
de classificação.
Capítulo
IV
Sobre
comidas e mulheres...
A sociedade manifesta-se por meio de muitos espelhos e vários idiomas. Um dos mais importantes no caso do Brasil é, sem dúvida, o código da comida, em seus desdobramentos morais que acabam ajudando a situar também a mulher e o feminino no seu sentido, talvez mais tradicional. Comidas e mulheres, assim, exprimem teoricamente a sociedade, tanto quanto a política, a economia, a família, o espaço e o tempo, em suas preocupações e, certamente, em suas contradições. O antropólogo francês Lévi-Strauss quem chamou a atenção para os dois processos naturais - o cru e o cozido -, não somente como dois estados pelos quais passam todos os alimentos, mas como modalidades pelas quais se pode falar de transformações sociais importantíssimas.
Num plano mais filosófico e universal, sabemos que cru se liga a um estado de selvageria ( a um estado de natureza ), ao passo que o cozido se relaciona ao universo socialmente elaborado que toda a sociedade humana define como sendo o de sua cultura e ideologia. Mas é básico continuar enfatizando que a comida permite realizar uma importante mediação entre cabeça e barriga, entre corpo e alma, permitindo operar simultaneamente com uma série de códigos culturais que normalmente estão separados, como o gustativo, o código de odores, o código visual e, ainda, um código digestivo, posto que no Brasil também classificamos os alimentos por sua capacidade de permitir ou não uma digestão fácil e agradável.
Mas esses estados e suas concepções variam. Para europeus e norte-americanos, cru e cozido, alimento e comida, são categorias científicas, nem sempre levadas em conta no próprio ato de comer, conforme nos revelam as imensas saladas e as “comidas naturais” que são digeridas em países como Estados Unidos e Inglaterra como pratos principais, algo bem recente no Brasil. Para nós, o cru e o cozido podem significar com muito mais facilidade um universo complexo, uma área do nosso sistema onde podemos nos enxergar como formidáveis e nos levar finalmente, muito a sério. Nesse sentido, o cru seria tudo que está fora da área da casa onde somos vistos e tratados com amor, carinho e consideração, podendo - consequentemente - escolher a comida. Ou seja: o cru é tudo aquilo que está fora do controle da casa. Já o cozido é algo social por definição. Não é somente o nome de um processo físico - o cozimento das coisas pelo fogo -, mas, sobretudo, o nome de um prato sagrado dentro da nossa culinária.
Para nós, brasileiros, nem tudo que alimenta é sempre bom ou socialmente aceitável. Do mesmo modo, nem tudo que é alimento é comida. Em outras palavras, o alimento é como uma grande moldura, mas a comida é o quadro, aquilo que foi valorizado e escolhido dentre os alimentos; aquilo que deve ser visto e saboreado com os olhos e depois com a boca, o nariz, a boa companhia e, finalmente, a barriga... Mas qual é a comida brasileira básica? Certamente que se trata do feijão-com-arroz, essa comida que é até mesmo usada como metáfora para a rotina do mundo diário. Mas é preciso notar que, tanto no arroz quanto no feijão, temos um alimento que é cozinhado. Comer arroz e feijão, então, é misturar o preto e o branco, a cama e a mesa fazendo parte de um mesmo processo lógico cultural... Comida não é apenas uma substância alimentar, mas é também um modo, um estilo e um jeito de alimentar-se. E o jeito de comer define não só aquilo que é ingerido como também aquele que ingere.
A comida vale tanto para indicar uma operação universal - o ato de alimentar-se - quanto para definir e marcar identidades pessoais e grupais, estilos regionais e nacionais de ser, fazer, estar e viver. Em nossas casas, sabemos perfeitamente bem quem gosta do quê e como esse alguém gosta de comer alguma coisa. Mas há comida e comidas. Falamos que “mulher oferecida não é comida”, num trocadilho chulo mas revelador da associação, intrigante para estrangeiros, entre o ato sexual e o ato de ingerir alimentos. O fato é que as comidas se associam à sexualidade, de tal modo que o ato sexual pode ser traduzido com um ato de “comer”, abarcar, englobar, ingerir ou circunscrever totalmente aquilo que é (ou foi) comido. A comida, como a mulher desaparece dentro de comedor - ou do comilão. Assim a relação sexual, na concepção brasileira coloca a diferença e a radical heterogeneidade, para logo em seguida hierarquizá-la no englobamento de um comedor e um comido.
Num sentido
muito geral e culturalmente valorizado, fala-se sempre que quem come é
o homem, a mulher cozinha e dá os alimentos e a comida. Mas pode-se
afirmar, sem corre o risco do exagero, que mesmo hoje, nesta era de transformação
e mudanças rápidas, o homem é o englobador do mundo
da rua, do mercado, do trabalho, da política e das leis, ao passo
que a mulher engloba o mundo da casa, da família, das regras e costumes
relativos à mesa e à hospitalidade. A sexualidade e a arte
de comer ainda não se transformaram em assuntos inteiramente individuais.
São ao contrário coisas fundamentalmente coletivas - atos
críticos de relacionamento e reprodução social. Daí
a nossa forma especial de comer. Nosso jeito brasileiro de apreciar a mesa
grande, farta, alegre e harmoniosa. Mesa que congrega liberdade, respeito
e satisfação. Momento que permite orquestrar todas as diferenças
e cancelar as mais drásticas oposições.
Capítulo
V
O carnaval,
ou mundo como teatro e prazer
Todas as sociedades alternam suas vidas entre rotinas e mitos, trabalho e festa, corpo e alma, coisas dos homens e assunto dos deuses, períodos ordinários - onde a vida transcorre sem problemas - e as festas, os rituais, as comemorações, os milagres e as ocasiões extraordinárias, onde tudo pode ser iluminado e visto por novo prisma, posição, perspectiva e ângulo...
A viagem da rotina para o extraordinário, porém depende de uma série de fatores. Ela pode variar de sociedade para sociedade e pode ser realizada tanto coletiva quanto individualmente. No Brasil, como em muitas outras sociedades, o rotineiro é sempre equacionado ao trabalho ou a tudo aquilo que remete a obrigações e castigos... a tudo que se é obrigado a realizar; ao passo que o extraordinário, como o próprio nome indica, evoca tudo que é fora do comum e, exatamente por isso, pode ser inventado e criado por meio de artifícios e mecanismos. Ou melhor, tanto a festa quanto a rotina são modos que a sociedade tem de exprimir-se, de atualizar concretamente, deixando ver a sua “alma” ou o seu coração.
O trabalho sempre indica a idéia (ou ideal) da construção do homem pelo homem. Um controle da vida e do mundo pela sociedade. Todas as rotinas produtivas, sobretudo nas sociedades protestantes e plenamente industrializadas, são marcadas pela previsão e pela racionalidade. Até mesmo no caso da produção agrícola, ocorre essa diagramação, de modo que a tentativa é sempre de criar uma seqüência onde o controle é total. Na sociedade industrial, a ausência de movimento é sintoma de mal-estar social. O acidente - aquilo que não foi planejado ou previsto - é também sinal de que algo está indo mal. A palavra ‘catástrofe’, que tanto usamos para definir tais situações, significa precisamente “reviravolta”, de modo que é perfeita para esses casos. Ao lado, porém, desses extra-ordinários que são acidentais, que ninguém desejou e que não foram planejados pela sociedade, existem momentos especiais que o próprio grupo, planeja, constrói, inventa e espera. Todos os sistemas constroem suas festas de muitos modos. No caso do Brasil, a maior e mais importante, mais livre e mais criativa, mais irreverente e mais popular de todas é, sem dúvida, o carnaval.
Mas como definir o carnaval? É uma ocasião em que a vida diária deixa de ser operativa e, por causa disso, um momento extraordinário é inventado. Como toda festa, o carnaval cria uma situação em que certas coisas são possíveis e outras devem ser evitadas. Sabemos que o carnaval é definido como “liberdade” e como possibilidade de viver uma ausência fantasiosa e utópica de miséria, trabalho, obrigações, pecado e deveres. Numa palavra, trata-se de um momento onde se pode deixar de viver a vida como fardo e castigo. O carnaval é percebido como algo que vem de fora, com uma onda irresistível que nos domina, controla e, melhor ainda, seduz inapelavelmente. É também descobrir que todos são iguais ou podem ser iguais perante o carnaval. O carnaval é basicamente uma inversão do mundo. Uma catástrofe. Só que é uma reviravolta positiva e esperada, planificada e, por tudo isso, vista como desejada e necessária em nosso mundo social. No carnaval trocamos o trabalho que castiga o corpo pelo uso do corpo como instrumento de prazer e beleza. Pela mesma lógica, o carnaval permite a troca e a substituição dos uniformes pelas fantasias.
Ora,
é precisamente por estar vivendo num mundo assim constituído,
onde as regras do mundo diário estão temporariamente de cabeça
para baixo, que posso ganhar e realmente sentir uma incrível sensação
de liberdade. No carnaval, nós, brasileiros, cantamos e, geralmente,
podemos fazer o que cantamos, o que permite que as pessoas se olhem e,
subitamente, se vejam em sua unidade como “pessoas” e em sua diversidade
como membros de uma comunidade social e politicamente diferenciada. Carnaval,
pois, é inversão porque é competição
numa sociedade marcada pela hierarquia. É movimento numa sociedade
que tem horror à mobilidade, sobretudo à mobilidade que permite
trocar efetivamente de posição social.
Capítulo
VI
As festas
da ordem
As festas permitem descobrir oscilações entre uma visão alegre e uma leitura soturna da vida. Todas s festas recriam e resgatam o tempo, o espaço e as relações sociais. Assim, é na festa que tomamos consciência de coisas gratificantes e dolorosas. Que não podemos comparecer porque não somos da mesma classe social, que somos bons dançarinos, etc. No caso brasileiro, todas as solenidades permitem ligar a casa, a rua e o outro mundo. O carnaval liga casa, rua e outro mundo querendo e propondo a abertura de todas as portas e de todas as muralhas e paredes. Os ritos cívicos e religiosos fazem o mesmo mas com propostas diferentes. Nos carnavais e orgias, o propósito básico parece ser o de igualar e juntar. Mas no caso das festas da ordem, ou seja, das formalidade sociais em que se celebram as relações sociais tal como elas operam no mundo diário, as diferenças são mantidas.
Os rituais religiosos partem de locais sagrados, pretendendo ordenar o mundo de acordo com os valores que são ali articulados como os mais básicos. Nos ritos de ordem em geral, e nos rituais religiosos em particular, o comportamento é marcado pela contrição e pela solenidade que se concretizam nas contenções corporais e verbais. O poder do sagrado, conforme dizia Durkhiem, é um poder que permite distinguir o mundo diário, com suas rotinas automáticas e que tendem a uma inércia e uma indiferenciação cada vez maiores, esse sistema de coisas que eram chamadas de “profanas”, das coisas e do universo de Deus e do Alto.
A leitura da sociedade facultada pelos ritos da ordem, então, é uma leitura onde o corpo deve ser contido ou até mesmo neutralizado. A continência militar é excelente exemplo disso, pois os ritos da ordem incluem também as grandes comemorações militares, como as paradas. Tudo isso é salientado com precisão em todos os ritos da ordem onde a idéia de sacrificar o corpo pela pátria, por Deus ou por um partido político acaba se exprimindo pela noção de dever, de devoção e de ordem. O que contrasta com os rituais carnavalescos.
Se os ritos da desordem promovem temporárias des-construções ou re-arrumações sociais, os ritos da ordem marcam de forma taxativa quem é ator e quem é espectador. É, justamente, esse resgate da ordem que tais rituais pretendem realizar por meio dessas dramatizações. Daí, certamente, a associação entre cerimonial e poder. É que o ritual reveste o poder, dando-lhe uma forma exterior solene e legítima. De modo que todos os rituais assumem a forma básica de um desfile, procissão ou parada militar. No caso do Rio de janeiro, quase sempre se realizam em frente ao Panteão do Exército Nacional, local situado em frente ao Ministério da Guerra. Não poderia haver local mais sagrado que esse.
Temos
o desfile militar para as autoridades, temos as procissões que focalizam
as relações dos homens com Deus através da Igreja.
E temos o desfile do carnaval, que faz o povo ser ao mesmo tempo espectador
e ator. Mas os rituais da ordem não se esgotam nessas festas grandiosas
em que o mundo social é reafirmado e englobado pelo Estado e pela
igreja. Eles também estão presentes em situações
muito mais familiares a todos nós, através dos nascimentos,
batizados, crismas, casamentos e funerais. Em geral, todas essas festas
comemoram ou celebram alguma coisa que, supomos, realmente aconteceu. A
vida de um santo é uma história exempla a ser imitada pelos
homens. Do mesmo modo em formaturas e aniversários, casamentos e
funerais, resgata-se algum tipo de modelo. O homem é um animal que
busca o sentido em tudo - esta é sua sina. Tudo isso, permite notar
que os ritos da ordem têm um centro. Seja um evento, seja um personagem,
seja um objeto, neles existe, como centro, uma cena básica e cenários
periféricos.
Capítulo
VII
O modo
de navegação social: a malandragem e o “jeitinho”
Entre a desordem carnavalesca, que permite e estimula o excesso, e a ordem, que requer a continência e a disciplina pela obediência estrita às leis, como é que nós, brasileiros, ficamos? No meio dos dois, a malandragem, o “jeitinho” e o famoso e antipático “sabe com quem está falando?” seriam modos de enfrentar essas contradições e paradoxos de modo tipicamente brasileiro.
Nos Estados Unidos, na França e na Inglaterra, somente para citar três bons exemplos, as regras ou são obedecidas ou não existem. Assim , diante dessa enorme coerência entre a regra jurídica e as práticas da vida diária, o inglês, o francês e o norte-americano param diante de uma placa de trânsito que ordena parar. É isso que faz a obediência que tanto admiramos e, também, engendra aquela confiança de que tanto sentimos falta. Porque, nessas sociedades, a lei não é feita para explorar ou submeter o cidadão, ou como instrumento para corrigir e reinventar a sociedade. Lá, a lei é um instrumento que faz a sociedade funcionar bem.
Claro está que um dos resultados dessa confiança é uma aplicação segura da lei que, por ser norma universal, não pode pactuar com o privilégio ou com a lei privada, aquela norma que se aplica diferencialmente situadas na escala social. Isso que ocorre diariamente no Brasil, quando, digamos, um bacharel comete um assassinato e tem direito a prisão especial e um operário, diante da mesma lei, não tem tal direito porque não é, obviamente, bacharel. Assim aqui, todos podem ser primários ou não; e os crimes admitem graus de execução, estando de acordo com o princípio hierárquico que governa a sociedade.
Por tudo isso, somos um país onde a lei sempre significa o “não pode!” formal, capaz de tirar todos os prazeres e desmanchar todos os projetos e iniciativas. É precisamente por tudo isso que conseguimos descobrir e aperfeiçoar um modo, um jeito, um estilo de navegação social que passa sempre nas entrelinhas desses autoritários “não pode!”. O “jeito” é um modo e um estilo de realizar. É sobretudo um modo simpático, desesperado ou humano de relacionar o impessoal com o pessoal. Em geral, o “jeito” é um modo pacífico e até mesmo legítimo de resolver tais problemas, provocando essa junção inteiramente casuística da lei com a pessoa que a está utilizando.
A malandragem, como outro nome para a forma de navegação social nacional, faz precisamente o mesmo. Malandro, portanto, seria um profissional do “jeitinho” e da arte de sobreviver nas situações mais difíceis. Do lado do malandro, e como o seu oposto social, temos a figura do despachante, esse especialista em entrar em contato com as repartições oficiais. O despachante, como figura sociológica, só pode ser visto em sua enorme importância quando novamente nos damos conta dessa enorme dificuldade brasileira de juntar a lei com a realidade social diária.
Por tudo isso, não há no Brasil quem não conheça a malandragem, que não é só um tipo de ação concreta situada entre a lei e plena desonestidade, mas também, e sobretudo, é uma possibilidade de proceder socialmente. A possibilidade de agir como malandro se dá em todos os lugares. Mas há uma área onde certamente ela é privilegiada. Quero referir-me à região do prazer e da sensualidade, zona onde o malandro é o concretizador da boêmia e o sujeito especial da boa vida. O malandro é aquele que sempre escolhe ficar no meio do caminho, juntando, de modo quase sempre humano, a lei, impessoal e impossível, com a amizade e a relação pessoal, que dizem que cada homem é um caso e cada caso deve ser tratado de modo especial.
A malandragem
assim, não é simplesmente uma singularidade inconseqüente
de todos nós, brasileiros. De fato, trata-se mesmo de um modo profundamente
original e brasileiro de viver, e às vezes sobreviver, num sistema
em que a casa nem sempre fala com a rua e as leis formais da vida pública
nada têm a ver com as boas regras da moralidade costumeira que governam
a nossa honra, o respeito, e, a lealdade que devemos aos amigos, aos parentes
e aos compadres. Antes de ser um acidente ou um mero aspecto da vida social
brasileira, coisa sem conseqüência, a malandragem é um
modo possível de ser. Algo muito sério, contendo suas regras,
espaços e paradoxos...
Capítulo
VIII
Os caminhos
para Deus
Nós brasileiros, marcamos certos espaços como referências especiais da nossa sociedade. A casa onde moramos, comemos e dormimos; a rua onde trabalhamos e ganhamos a luta pela vida. A cada um desses, podemos somar um outro espaço. Quero referir-me ao espaço do outro mundo, essa área demarcada por igrejas, capelas, ermidas, terreiros, centros espíritas, sinagogas, etc.
No universo da religião, estamos muito mais interessados em conversar com Deus, com os santos, com a Virgem Maria e Jesus Cristo e com toda a legião de entidades que ali habitam. Em vez de discursar, rezamos; em vez de ordenar, pedimos; em vez de simplesmente falar, como fazemos habitualmente, suplicamos. Existem outras formas de falar com o mundo de Deus que são solitárias e outras que são coletivas. Coletivamente, o modo mais comum é através da cantoria, onde a prece faz com que se juntem todos os pedidos num só. As formas individuais, por sua vez, seriam normalmente as mais fracas, embora a fé, a esperança e a caridade de cada um sejam também elementos importantes no atendimento de suas súplicas ou preces. As súplicas, acompanhadas de objetos, na forma de promessas, oferendas e sacrifícios, são naturalmente mais fortes que um simples pedido verbal.
Mas por que se fala com Deus? As respostas são muito variadas. Um fator sociológico básico, porém, é que existe a necessidade de construir esse grande espelho a que chamamos religião para dar a todos e a cada um de nós, um sentimento de comunhão com o universo como um todo. A religião marca e ajuda a fixar momentos importantes na vida de todos nós. Desse modo, nascimentos, batizados, crismas, comunhões, casamentos e funerais são marcados pela presença da religião, que legitima com o aval divino ou sobrenatural uma passagem que se deseja necessária. Todos esses aspectos formam aquilo a que chamamos religião num sentido amplo. A religião é um modo de ordenar o mundo, facultando nossa compreensão para coisas muito complexas, como a idéia de tempo, a idéia de eterno e a idéia de perda e desaparecimento, esses mistérios perenes da existência humana.
Mas como se chega a Deus no Brasil? Aqui como em outros lugares, temos uma religião dominante e que até bem pouco tempo foi oficial. Trata-se do Catolicismo Romano. A variedade de experiências religiosas brasileiras é, ao mesmo tempo ampla e limitada. É ampla porque ao Catolicismo e ás várias denominações protestantes, somam-se outras variedades de religiões Ocidentais e Orientais, além das variedades brasileiras de cultos de possessão cuja tradição é uma constelação variada de valores e concepções. A variedade é limitada, porque essa formas mais diversas coexistem tendo como ponto focal a idéia de relação e a possibilidade de comunicação entre homens e deuses, homens e espíritos, homens e ancestrais. Em todas as formas de religiosidade brasileira, há uma enorme e densa ênfase na relação entre este mundo e o outro, de modo que a domesticação do tempo e da morte é elemento fundamental em todas essas variedades ou jeitos de se chegar a Deus.
Nós brasileiros, temos intimidade com certos santos que são nossos protetores e padroeiros, nossos santos patrões, do mesmo modo que temos como guias certos orixás ou espíritos do além, que são nossos protetores. A relação pode ter forma diferenciada, mas a sua lógica estrutural é a mesma. O que pode parecer singular no caso brasileiro é que cada uma dessas formas de religiosidade seja suplementar às outras, mantendo com elas uma relação de plena complementaridade. A igreja é uma forma básica de religião, marcando talvez o lado impessoal de nossas relações com Deus. A linguagem religiosa do nosso país é uma linguagem da relação e da ligação. Um idioma que busca o meio-termo, o meio caminho, a possibilidade de salvar todo o mundo e de em todos os locais encontrar alguma coisa boa e digna.
O outro
mundo tem muitas formas e são vários os caminhos de se chegar
até ele no Brasil. Mas por detrás de todas as diferenças,
sabemos que lá, nesse céu à brasileira, é possível
uma relação perfeita de todos os espaços. Essa, pelo
menos, é a esperança que se imprime nas formas mais populares
de religiosidade...
Estes são
alguns dos textos que estão disponíveis para você em
Antropologia. Se quiser outros textos mande um e-mail